segunda-feira, 2 de maio de 2011

A cultura Kalunga e o meio ambiente

Por racismoambiental, 01/05/2011 15:43

Uma vez o “Seu” Domingos, da comunidade Ema de Teresina de Goiás, afirmou que os Kalunga não pararam no tempo, como muitos diziam. “Nóis parou o tempo!”
Fernando Lana*

Brasília – Kalunga também é o Mar, o grande rio e é também a comunidade quilombola que vive no Nordeste goiano, na Chapada dos Veadeiros, por mais de 289 anos, escreve Fernando Lana.
O Portugal Digital inicia hoje a publicação de um estudo sobre as comunidades da cultura Kalunga, as suas relações com o meio ambiente e as questões das atividades agro-pastoris. O estudo desenvolvido pelo sertanista Fernando Lana aborda vários aspectos da comunidade Kalunga, constituída por afro-descendentes.
O Carmanjo
Carmanjo é um personagem do folclore Kalunga. É um sujeito inteligente, bem-humorado, mas é ladino, um espertalhão que gosta de levar vantagem em tudo. Os Kalunga contam várias histórias do Carmanjo, dentre elas a que se segue:
Numa noite escura, já bem tarde, o Carmanjo, navegando pelo Vão de Almas em sua mulinha, passa por uma casa e grita:  “Kalungueiro! Qual é a melhor parte da galinha?”
O morador da casa responde, lá de dentro: “É o ovo! (1)
O Carmanjo toca em frente e vai embora.
Um mês depois (2), o Carmanjo volta pela mesma estrada cavaleira e, passando pela mesma casa à noite, grita: “Com quê?”
O morador Kalunga responde: “Com sal!” (3)
Kalunga
Kalunga é a fonte universal que fez, faz e fará as coisas acontecerem ontem, hoje e, acima de tudo, amanhã. Essa força total é a vida em si mesma- é a própria vida. (Nei Lopes, em Kitabu, o livro do saber e do espírito negro–africanos)
Kalunga também é o Mar, o grande rio e é também a comunidade quilombola que vive no Nordeste goiano, na Chapada dos Veadeiros, por mais de 289 anos, a maior parte deles vividos em isolamento nos vãos entre serras daquela a região. Muitos e muitos anos praticamente sem visitação externa, com pouquíssima influência do mundo moderno, em especial, da tecnologia.
O território Kalunga é de suma relevância para a memória goiana e nacional e sendo assim, pela Lei nº 11.409 de 21 de janeiro de 1991, foi decretado Sítio Histórico e Patrimônio Cultural pela Assembléia Legislativa do Estado de Goiás e sancionada pelo então Governador Henrique Santillo. Em 1995, foi aprovada uma lei complementar criando e demarcando o Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga.
O Tempo no Kalunga
Estar em áreas remotas do Sítio Kalunga, como no Vão de Almas é como estar de volta ao século XIX. Não se trata apenas de não ter eletricidade, televisão e tráfego de carros. Se trata também das “dificulidades”, da falta de recursos básicos, de escolas e profissionais do ensino, de comunicação com “ o resto do mundo “. Celular, internet? Nem pensar! No Vão de Almas e em muitas outras regiões, o tempo parou.
Uma vez o “Seu” Domingos, da comunidade Ema de Teresina de Goiás, afirmou que os Kalunga não pararam no tempo, como muitos diziam. “Nóis parou o tempo!”
Se perguntar que dia é hoje nessas regiões que dia é hoje, a resposta será, com certeza, “hoje é abril”! E amanhã é maio!
Os Saberes e Fazeres
As comunidades tradicionais detêm o notório saber em diversas áreas, como a fitoterapia, a cerâmica, a fiação e tecelagem, os trabalhos em madeira, palha e couro, a construção de casas, a produção de sabão orgânico, a gastronomia, dentre outras. O mesmo isolamento histórico citado anteriormente manteve estas atividades ativas, como necessidade de produção de utensílios.
Hoje, sob uma nova visão, os mesmos utensílios fabricados artesanalmente são de grande interesse dos visitantes e são classificados como artesanato, grande gerador de trabalho e renda para as comunidades.
A prática agro-pastoril tradicional
“Mês de Maio é hora de bruquiá a roça, mês de julho vai derrubá, mês de agosto põe fogo, queima … queima ela, agora vai encoivará, chegá aquelas madeirinhas … bota tudo no jeito e vai mexendo aí, que quando chegá a chuva … tá toda arrumadinha, é só pulá de dentro e capiná, as muié catando o cisco os hôme trabaiano, … agora vai curriá tudo de enxada … e planta o arroz, planto o milho, planta a mandioca, planta a verdura, o que qué dentro da roça…” (Matriarca Leonilda (D. Leó) da localidade da Ema /GO, 2003).
Roça sazonal de toco, pomares permanentes, pecuária extensiva e o extrativismo são as principais atividades que envolvem o manejo dos recursos naturais pela população de um quilombo.
Mandioca, arroz, milho, gergelim, inhames, batata, banana, cítricos, cana de açúcar, feijão, abóbora, maxixe, quiabo e chuchu são as principais variedades, a criação de gado e de porco completa o conjunto das atividades agrícolas. Junto à agricultura também é praticado o extrativismo de espécies nativas.
A prática agro-pastoril tradicional em quilombos, em especial nos mais isolados, deve ser reconhecida, valorizada, incentivada e conservada. Essas práticas centenárias, parte da cultura e tradições locais, são carregadas de conhecimento oral e isentas de influências externas, como o uso de agrotóxicos, medicina veterinária alopática, sementes híbridas, ou seja, da dependência de multinacionais para a produção agrícola e criação de gado.
Com suas sementes historicamente orgânicas, tradicionalmente e cuidadosamente guardadas penduradas no madeirame de cada casa, estas comunidades produzem alimento orgânico em suas colheitas anuais. Quando criavam o gado Curraleiro, já produziam o boi verde, a carne orgânica, “que cheirava longe ao ser assada”.
Este diferencial, além de manter a cultura nas práticas agro-pastoris, agrega valor a seus produtos e à gastronomia pela sua qualidade e por seu histórico e valor sócio-cultural. É fator diferencial e valor agregado a um produto com a tradição, a história e a cultura de um povo.
Agricultura tradicional Kalunga (As “cumida provisória”)
Mandioca / Algodão / Gergelim / Milho / Arroz / Abóbora / Hortas / Feijão de corda/ Feijão de arranca / Melancia / Açafrão / Quiabo / Jiló / Batata / Inhame / Batata Doce / Gergelim/ Amendoim / Fumo (Tabaco).
Frutas de quintal
Abacaxi / Banana / Mamão / Caju / Laranja / Lima / Limão / Maracujá / Jenipapo
“A gente só sabe se deu quando sobra”. (Mestre Emiliano – Vão de Almas – Sítio Kalunga / Cavalcante/GO – 2001)
A cultura como ferramenta de preservação ambiental
Em busca da liberdade, os quilombolas escolheram locais de difícil acesso, seja em Palmares ou entre montanhas da Serra do Espinhaço, em Minas Gerais, nos vales isolados de todo o Brasil. Em muitos desses locais houve grande interação com a população indígena e muita troca de conhecimento.
Tal como os indígenas, estes afro-descendentes viviam e até hoje vivem nos quilombos, com grande abundância de alimentos, sem alterar muito a ecologia local.
No quilombo Kalunga não foi diferente. A região era território dos Avá-canoeiros, que receberam bem os novos habitantes de pele escura. Ainda hoje há relatos dos encontros com os “cumpadi”, como denominam os índios, com troca de mercadorias e presentes.
A prática agro-pastoril feita artesanalmente permite a produção de subsistência e também para comercialização do excedente, sem, contudo necessitarem de grandes desmatamentos, de mecanização e plantações em grande escala.
As plantações de melancias, milho e tabaco nas vazantes dos rios são alternativas de produção durante a seca.
As roças de toco são surpreendentes. A primeira vista, o corte das árvores nos raros terrenos férteis e a queima dos galhos secos parecem uma agressão à natureza. Após dois anos de plantio, área é a abandonada para rápida recuperação. Os tocos rebrotam e logo a mata parece virgem a quem por lá passa.
“Aqui onde hoje é mato já foi roça minha”. (Dino – Ema – Sítio Kalunga)
Durante todo o ano, as frutas do cerrado ou das florestas também contribuem na dieta das comunidades, assim como a criação de animais em pequena escala e a pesca artesanal.
Plantas Medicinais utilizadas na comunidade
Viqui / Hortelã / Hortelãzinho / Sete-Dor / Saúde da Mulher /Quebra Pedra / Batatão / Velame / Carapiá / Assa Peixe / Boldo / Mastruz / Folha Santa / Capim Santo /Mentraste / Erva Doce / Folha de Andu / Chapado /Quina / Imburana de Cheiro / Capim de Cheiro / Erva Cidreira / Babosa / Gervão / Vinagreiro / Arruda / Mulatinha / Anador / Dipirona / Amilona / Lacraia / Lobim / Alfavaca / Manjericão / Alecrim
Frutas do Cerrado
Mangaba / Cagaita / Baru / Coco Xodó (Macaúba) / Buriti / Pequi
Esta prática de produção do alimento, com mais de 250 anos de história, certamente certifica esta atividade como ecologicamente correta. O Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga, ainda hoje, mais parece um parque natural com habitantes.
As roças, situadas em áreas de terra fértil, são difíceis de ser avistadas, pois geralmente se encontram em locais remotos, nos vales entre altas montanhas e chapadas de terra imprópria à agricultura, mas ricas em águas cristalinas, árvores frutíferas nativas de interesse econômico como a Macaúba, o Buriti, o Baru, a Cagaita, a Mangaba e o Pequi.
Neste contexto histórico, muitos erros foram cometidos pelo poder público durante as ações na região. O gado Curraleiro foi quase extinto, substituído pelo Nelore e pela nova tecnologia de produção de gado de corte, sem muito sucesso. As prefeituras municipais cedem seus tratores para desmatamento, adubação química e plantio de roça em áreas nunca antes aproveitadas. Essas pequenas lavouras de arroz e milho logo esgotam o solo fraco e a área é logo vira pasto.
“Vieram aqui e criaram campo onde não tinha”, (Dona Leó – Comunidade Ema – Sítio Kalunga, Teresina de Goiás)
A prática agrícola moderna, com alta tecnologia e amparada pelas multinacionais, causa espanto aos moradores da comunidade, quando têm a oportunidade de viajar, pois, afinal, é o modelo dos fazendeiros bem-sucedidos.
Como se diz na região: “Nem tão alto como urubu nem tão baixo como tatu”. A tecnologia do agro-negócio moderno não tem lugar no Kalunga, mas a produtividade pode aumentar com a fusão da agricultura tradicional Kalunga com a agricultura orgânica moderna na produção de cereais, ovos, hortaliças e carnes orgânicas.
O mercado de alimentos orgânicos está em plena acessão, nacional e internacionalmente, assim como a responsabilidade socioambiental e os valores culturais.
Já está passando da hora da cultura Kalunga ser mais reconhecida e valorizada. O compartilhamento de tecnologias deve ser mútuo.
Ninguém é tão ignorante que não tenha o que ensinar e nem tão sábio que não tenha mais nada que aprender. Ao chegar à comunidade Kalunga, tanto o leigo como o doutor deve dedicar mais tempo em aprender com os Kalunga os saberes centenários sustentáveis que ensiná-los práticas ainda sem garantia de sustentabilidade.
Notas:
(1) Sustentabilidade – os Kalunga não gostam de matar galinhas, pois as preferem para produção de ovos e para reprodução.
(2) Tempo – nas regiões mais remotas, uma semana ou um mês faz pouca diferença no tempo (Vide Hoje é maio).
(3) O Sal – muito raro e caro. Era buscado de barcaça em Belém do Pará, pelos rios Paraná e Tocantins. Um prato de sal equivalia a dois dias de trabalho.



* Fernando Lana é sertanista e consultor em Culturas Tradicionais e Ecologia - fernandoarrudalana@gmail.com.
http://www.portugaldigital.com.br/noticia.kmf?cod=11841022&indice=10&canal=156

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