Comunidades lutam para garantir a demarcação de uma área de 20 hectares em Belo Horizonte
Izamara Arcanjo
Engana-se quem acha que a luta pela terra está restrita à Amazônia e ao campo. Em Belo Horizonte, a pressão do setor imobiliário também intimida líderes de comunidades que lutam para preservar seu território, até com ameaça de morte. No caso da capital o conflito surgiu a partir da decisão da Prefeitura de permitir a construção de 73 mil apartamentos nos próximos anos para o Mundial de 2014, na chamada “Vila da Copa”, na Região Norte.
A iniciativa virou um drama para a líder quilombola Ione Maria de Oliveira, 43 anos. Ela briga junto com o Ministério Público Federal para garantir a demarcação da área pertencente ao quilombo Mangueiras, que fica em um local conhecido como Granja Werneck, incluído no projeto da prefeitura.
A comunidade quilombola pressiona o Incra para que seja oficialmente decretada a titulação da terra, que fica em uma das últimas áreas de Mata Atlântica da capital. Oficialmente, a Prefeitura reconhece que o território tem apenas dois hectares, dez vezes menos do que estimam os quilombolas, que reivindicam 20 hectares. Ione foi ameaçada pela primeira fez em março do ano passado, por meio de telefonemas anônimos. O agressor queria que ela entregasse o mapa original do quilombo e outros documentos que comprovam o comércio de terras entre a escrava Maria Bárbara de Azevedo, ascendente de Ione, e os antigos donos da Granja Werneck, onde fica o quilombo Mangueiras.
Depois da ameaça, Ione teve o nome incluído na lista da CPT e passou a ser assistida por um programa de proteção aos defensores dos direitos humanos. “Espero estar viva para continuar a lutar pelo nosso território. Não podemos ser expulsos daqui. A comunidade não pode ficar sem ter onde morar porque a prefeitura decidiu que precisa fazer apartamentos para a Copa do Mundo.”
A secretária-adjunta de Planejamento Urbano de Belo Horizonte, Gina Beatriz Rende, reconhece que o projeto viário feito inicialmente para a região não levava em conta a existência do quilombo. “O projeto previa que uma pequena área do quilombo fosse afetada pelas obras de construção de rodovias no local. Logo que percebemos esse problema, mudamos a configuração do projeto imediatamente.” A Prefeitura de Belo Horizonte está aguardando a decisão do Incra sobre a demarcação da área do quilombo. “Enquanto a demarcação não for feita, não vamos nos manifestar.”
Temor pela vida de netos e bisnetos
A família de Ione também está apreensiva com a situação. Dona Wanda Oliveira, 68 anos, conta que além de temer pela vida da filha, tem medo também pelos netos e bisnetos, todos vivendo no quilombo. “Somos muitas pessoas de uma mesma família vivendo aqui. Tenho dez netos e três bisnetos e não quero que nada de ruim aconteça com eles.”
O coordenador de conflito agrário do Ministério Público de Minas Gerais, Afonso Henrique de Miranda, lembra que a questão agrária no Brasil tem dois traços distintos: os ligados à demanda pela terra no campo e na floresta, que mobiliza movimentos sociais ligados à reforma agrária, e aqueles que envolvem as populações remanescentes de quilombos. “As áreas remanescentes de quilombos são consideradas pelo artigo 68 da Constituição como patrimônio histórico e cultural nacional. Nosso dever é zelar pelos bens da União. Essa discussão não deveria nem estar acontecendo. Se é uma área quilombola, não há como se construir nada nela. O problema é que o lobby das construtoras é muito grande e os governos são coniventes com ele.”
Ainda segundo o promotor, a escassez de áreas para a construção de grandes empreendimentos nas regiões metropolitanas tem feito com que as grandes construtoras não meçam esforços para garantir seu negócio. “O interesse econômico acaba preponderando. O rolo compressor do dinheiro esmaga quem estiver na frente, não importa quem seja.”
Um relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT) revela que, em Minas, houve em 2010 duas tentativas de assassinato no Norte do Estado e duas ameaças de morte a líderes de assentamentos e de comunidades quilombolas. A comissão denuncia a omissão de governos e da Justiça. “O que está acontecendo em todo o Brasil é extermínio, um genocídio”, diz o assessor da CPT em Minas Gerais, Frei Gilvander Luiz Moreira.
‘Imagino a hora em que vão entrar aqui para me matar’
A luta para garantir o direito de 57 quilombolas que ocupam uma área adjacente ao projeto em Belo Horizonte transformou a vida de Ione Maria de Oliveira, de 43 anos. Ameaçada de morte desde março do ano passado, Ione conta que nunca mais conseguiu fechar os olhos e ter uma noite de sono tranquila. “Acordo muitas vezes chorando e não consigo voltar a dormir. Depois das ameaças, eu não sou a mesma pessoa. Às vezes não consigo sequer ir trabalhar, sair de casa, de tanto medo.”
Ione revela que as ameaças foram feitas por meio de telefonemas para sua casa e para seu celular durante várias madrugadas seguidas. Ela também recebeu uma carta com imagens e textos que relembravam a morte de vários líderes que lutaram pelos direitos humanos. “Essa carta dizia que se até Chico Mendes foi assassinado porque eu não seria.”
A quilombola diz também que as ameaças começaram logo depois que uma equipe de antropólogos da UFMG finalizou a elaboração do Relatório Antropológico de Caracterização Histórica, Econômica e Sociocultural do quilombo, que integra um processo já bem avançado de titulação junto ao Incra. O relatório atesta que a área pertencente ao quilombo é de 20 hectares e não de 2 hectares, como quer a prefeitura. “Temos tudo documentado e isso está irritando a prefeitura, que deseja que vias públicas passem aqui dentro do quilombo.”
Ainda segundo o relatório, terras da região foram doadas em 1916 para a construção de um sanatório, que funcionou algum tempo e depois foi desativado. Em 1983, lei de iniciativa do prefeito retirou os gravames da doação, mas manteve a doação à Granja Werneck S/A, que agora estaria transferindo o terreno para empreendedores. O relatório também confirma que os escravos do quilombo compraram as terras onde fica a comunidade dos ex-donos da Granja Werneck .
Mesmo depois de ter o nome incluído na lista de pessoas ameaçadas, Ione diz que não se sente amparada nem protegida pelo Estado. “Só pude ter acesso à ONG que me presta acompanhamento psicológico oito meses depois que as ameaças começaram. Segurança policial , não tenho nenhuma. Só fico imaginando a hora em que eles vão entrar aqui no quilombo para me matar.” Ione protocolou no Ministério Público Federal uma representação contra a desapropriação das terras do quilombo. Em nota, o MPF informou que já instaurou procedimento para averiguar o caso e pediu ao Incra mais informações sobre a situação do quilombo. A procuradoria deu prazo até o início de julho para o Incra se manifestar.
No Mangueiras, além de conviver com a incerteza sobre o futuro do quilombo, as 12 famílias que vivem no local, ao todo 57 pessoas, ainda são obrigadas a conviver com a degradação ambiental provocada pelos ocupações irregulares no entorno. O presidente do quilombo, Maurício Moreira dos Santos, 53 anos, diz que as águas das cinco nascentes estão contaminadas. Segundo ele, obras de infraestrutura realizadas no Bairro Lajedo, culminaram na canalização de um esgoto, que acaba sendo despejado nas nascentes. “O pior é que tudo é feito com anuência da prefeitura”, diz.
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